A
revolução CME: para o despertar da neuropotencialidade motora
O diagnóstico de
paralisia cerebral devido à anóxia ocasionada por descuido médico-hospitalar
durante o parto de meu filho Caiano, causou-me uma tristeza indizível. A criança
que sonhávamos ver correr entre as fruteiras que
plantáramos no quintal de nossa casa em Pontal do Araguaia (Estado de Mato
Grosso, Brasil), estava com seus movimentos, desde os mais básicos,
comprometidos. Isso me fez refletir sobre a coexistência, mesmo na contemporaneidade,
de duas conjunturas paradoxais: a alta tecnologia disponível a serviço da
medicina, e a assustadora quantidade de profissionais da área da saúde que
ainda atuam como na idade da pedra.
Os tratamentos terapêuticos
convencionais que inicialmente buscamos, não mudaram nosso estado de incertezas,
pois não nos permitiram discernir claramente quais os possíveis progressos
motores. Ansiávamos pela existência de um modelo terapêutico cuja aplicação
fosse balizada em fundamentações mais científicas, e que por essa razão possibilitasse
previsão, com alguma probabilidade, de avanços
neuromotores concretos.
Em uma noite de insônia,
Cynthia, minha esposa, levantou-se com o intuito de encontrar apoio psicológico
nas redes sociais, e começou a ler diversos blogues de mães
que dividiam as mesmas angústias diárias e compartilhavam pontos de vista sobre
métodos de tratamento. Um deles lhe chamou a atenção, a de uma mãe
que relatava os avanços motores da filha, através de uma metodologia
que nós não conhecíamos, o CME (Cuevas MEDEK Exercises). Ao
buscar mais informações, o que via a respeito do CME lhe
agradava, e cada vez mais ela se convencia de que havia encontrado o método que
poderia corresponder às nossas expectativas.
Pouco tempo depois
já estávamos em Santiago do Chile, submetendo-nos a uma terapia, ou melhor, a
um modelo terapêutico de vanguarda. Fomos atendidos pelo próprio criador do
método, o fisioterapeuta Sr. Ramón Cuevas que, depois de avaliar minuciosamente
o quadro clínico de Caiano, iniciou a terapia sem qualquer promessa fantasiosa.
Pouco a pouco fomos percebendo uma notável melhora na qualidade de vida do
nosso menino. Sentimos que era o início de um novo momento. Ao regressar ao
Brasil, estávamos tão empolgados que só pensávamos em voltar ao Chile o mais breve
possível. Em Florianópolis, cidade para a qual nos mudamos depois do
diagnóstico, não havia ainda nenhum profissional habilitado para trabalhar
com esse método. Por essa razão, no segundo momento de terapia
intensiva (CME), foi-me permitido fazer um curso de capacitação,
na condição de pai e biólogo geneticista, para trabalhar com
Caiano exclusivamente com os exercícios home
program, recomendados pelo Sr. Cuevas. Essa preciosa oportunidade outorgada
generosamente em benefício do nosso filho, permitiu-me um envolvimento mais
íntimo com o método, o que me faz ousar um mergulho analítico em sua filosofia.
Do ponto de
vista dos resultados imediatos, o método do Sr. Cuevas continua me fascinando
por vários aspectos. Vou destacar e comentar apenas três deles. O primeiro é
que nos exercícios sempre há uma postura inicial, ou um cenário para
movimentos, a partir do qual a criança será
provocada a realizar sozinha novos movimentos. O segundo aspecto, não
menos curioso, é que se a criança às vezes não responde na
primeira tentativa, ou na segunda ou terceira, em algum momento seguramente ela
responderá. O terceiro aspecto é que isso só ocorrerá em sua plenitude se o
fisioterapeuta estiver concentradamente conectado à criança,
como que conduzindo uma precisa dança, um balé.
Quando aprendi a
executar alguns exercícios do método CME com Caiano, não
pude evitar de pensar nos primeiros símios que deixaram de ser arborícolas para,
como bípedes, ocuparem e dominarem as superfícies da Terra. Muitas das posturas
engenhadas pelo Sr. Cuevas remontam cenas tão primitivas
quanto se preparar para fugir quando surpreendido por predadores. Algumas
vezes, quando o Sr. Cuevas executava uma dessas posturas iniciais, que chamo de
‘posturas de fuga’, eu não conseguia me conter e lhe dizia “aí vem o tigre!”... Da postura inicial, logo a criança
levanta-se em estado de alerta, como fugindo de um predador ou do inimigo. Ela,
quando provocada pela postura, vence sozinha a gravidade e experimenta a sensação
autônoma de se colocar de pé. Emociono-me quando lembro das
primeiras vezes em que isso aconteceu com meu filho e com outras crianças.
Arregalavam os olhos e admiravam-se com os próprios feitos, e às vezes choravam
e riam ao mesmo tempo quando submetidas a essa sensação
aparentemente tão primitiva, porém nova para eles: ficar de pé.
Quando
terapeutas tradicionais observam exercícios isolados de CME, publicados em
ambientes virtuais, é comum apresentarem os seguintes questionamentos: E o
pescoço? E o tronco? E os pés? E os quadris? E a espasticidade? E a
hipotonia? E o choro? Tais perguntas são previsíveis,
já que a preocupação com a estética dos membros e o foco na patologia são
uma constante nas terapias tradicionais que, quase sempre, visam “corrigir” desvios
de posturas consideradas aceitáveis a partir de um parâmetro
de normalidade esperado. Na justificativa de evitar as tendências a atrofias, nos
métodos tradicionais a criança é “corrigida” a todo momento,
sobrecarregando o cotidiano doméstico que se exaure em “correções”
quanto a maneira de alimentar, segurar, sentar, trocar e até de se relacionar
com o filho. Nesse tipo de rotina, a criança se transforma em uma totalidade
problemática a ser adequada a um modelo que está longe de mudar a sua condição,
já que é pautado na realidade de um cérebro não lesado. Como
milhares de outros pais, nós também sofremos essa tortura, e o que vimos após essas
terapias “corretivas” ou “facilitadoras” foi o bastante para percebermos que o
quadro de espasticidade continuava evoluindo, e que as mãozinhas
continuavam bem fechadas, e os pezinhos rumavam para a contratura, prescindindo
ou não do uso de órteses, terapias fantasiosas e recomendações.
Na filosofia
CME, ao contrário, não há
uma preocupação direta com a correção estética, porque justamente considera-se
que “a espasticidade não é um mostro a que se tem que temer”, diria
o Sr. Cuevas. No entanto, curiosamente, depois das sessões
terapêuticas com CME, detectamos que as mãos
do nosso filho tornaram-se mais abertas e relaxadas, e o corpo menos espástico.
Ainda, Caiano já demonstra interesse e consegue segurar alguns objetos com
alguma coordenação, o que nos dá a certeza de que estamos no caminho certo. O
Sr. Cuevas já tem em seu repertório, ou cria no momento adequado, formulações
para se assegurar de que as reações aparentemente automáticas e primitivas da espasticidade ou hipotonicidades se
convertam em posturas e movimentos mais harmônicos e
coordenados pelo “cerebrito” da criança.
Muitas perguntas
poderão surgir. Diante delas, restrinjo-me a essas reflexões
que aqui apresento, porque ainda estou engatinhando no método. Por outro lado,
sinto que não posso abreviar tanto, pois tive o privilégio de ver os
ganhos motores, tanto de meu filho Caiano quanto de uma dúzia de crianças
que eu conheci e tive a oportunidade de acompanhar pessoalmente em parte de
seus tratamentos em Santiago.
Ao longo de meus
estudos acadêmicos aprendi que, independentemente de onde esteja uma mãe
grávida, nas zonas de calor ou de frio,
secas ou húmidas, altas ou baixas, sejam elas machistas
ou feministas, costumeiramente desnudas ou cobertas, caçadoras
ou agricultoras, donas de casa ou escravas, seus fetos se desenvolverão
em um ambiente bastante idêntico: o líquido amniótico. Depois que nascem, já no
colo, todos os Homo sapiens pequenininhos
são provas vivas da existência de uma herança
de um programa de desenvolvimento geneticamente estabelecido muito antes de
seus bisavós, muito antes do homem das cavernas, selecionado no tempo das
dimensões evolutivas.
Quando em um
parto ocorre a perda de grupos de neurônios no cérebro, por falta de oxigênio,
por exemplo, sucede a inativação irreversível de área ou áreas,
e, por consequência, a interrupção do amadurecimento de determinados
circuitos que se experimentavam durante o desenvolvimento do feto. Essas vias
neuronais lesadas podem ser exatamente aquelas que foram selecionadas por
milhares de anos e que, teoricamente, são o produto da seleção
natural de programas de estabelecimento de circuitos sinápticos mais econômicos
e eficientes para o desenvolvimento neuromotor do bebê – esse pequeno que é
geneticamente “determinado” a ser um bípede, caçador, coletor,
conquistador e escravo de sua criatividade.
Além de requerer
nos tribunais de justiça indenização
pelos danos causados, o que fazer quando a barbaridade médico-hospitalar deleta
conjuntos de neurônios de uma criança em seu nascimento?
Injetar novas
células nervosas, para substituir as que se foram, pode ser considerada uma
ideia romântica e conveniente, mas no contexto atual é um tanto pueril,
uma vez que o que se perderam foram as conexões, isto é, os
experimentos sinápticos selecionados naturalmente desde o ancestral comum ao Homo erectus, H. habilis e H. sapiens. Submetê-los
às terapias de movimentos facilitadores e/ou repetitivos, ou tensões/relaxamentos
musculares induzidos por aparelhagens, parece-me uma tentativa de hierarquizar ‘dos
músculos estriados às sinapses cerebrais’ a noção de equilíbrio, centro de massa, simetria e sinestesia – é como
superestimar o mecânico e linear ao sistêmico e multidimensional.
Novas
tecnologias têm sido aplicadas no tratamento de crianças
com paralisia cerebral. No entanto, infelizmente, parece que quase todas seguem
um mesmo protocolo antigo e ultrapassado que ignora as novas descobertas do funcionamento
do cérebro e, portanto, da plasticidade neuronal. Essa situação
nos remete a um tempo em que a noção que se tinha do funcionamento cerebral
respaldava a ideia de que a aprendizagem ocorria por repetição.
E assim, lamentavelmente, as crianças aprendiam a ler sendo forçadas
a memorizar à exaustão, o alfabeto, as palavras curtas e “mais fáceis”,
acreditando que a construção das frases era simplesmente um
somatório de palavras (assim se cria um analfabeto funcional). Naquele tempo
não tão remoto a criança não era estimulada
a materializar seu próprio pensamento através da escrita, apenas escrevia os
ditados ou fazia cópias dos livros ou da lousa, enquadrando-se nos modelos
pré-estabelecidos.
Temos observado
que o esforço exacerbado para ajustar uma criança
à normalidade, do ponto de vista estético ou até mesmo funcional, pode induzir caminhos onde os
pais inocentemente submetem seus filhos a procedimentos de agravamento do
quadro neuromotor já comprometido. Oxalá os institutos de pesquisa, as
universidades, e porque não as clínicas
e hospitais, que não atuam exatamente no campo da inocência, e sim no do lucro, deixem de perpetuar e fazer escolas
no campo do ostracismo.
O Sr. Cuevas presenteou
a humanidade com o desenvolvimento de um conjunto de procedimentos em que o
fisioterapeuta é desafiado a ser um jogador de lego e, ao mesmo tempo, um
compositor de movimentos harmoniosos, simétricos e de qualidade. As “peças” do lego e suas combinações são as inúmeras possibilidades de provocações
que irão constituir uma via essencial para se alcançar
o mais próximo possível
das funções normais, isto é, daqueles movimentos coordenadamente
esperados se o cérebro não tivesse sido
lesado. Diferente de outros protocolos antigos, o CME preconiza o exercício
criativo do fisioterapeuta na exploração do que se conhece como
neuroplasticidade. Em seu método não existem aparelhos, existem peças
que se constituem homologamente como unidades de um lego. Ainda, essas peças
podem ser comparadas aos instrumentos de uma filarmônica.
O violino, por exemplo, pode silenciar enquanto a tuba apresenta-se imponente, ou
onde os tímpanos podem se sobressair às flautas e clarinetes, etc. – tudo
dependerá do compositor, desse também exímio jogador de lego multidimensional. O
fisioterapeuta precisa ter disposição e saber que não
existem fórmulas, que não
existem aparelhos, existem combinações tão simples quanto
os villoncicos e outras tão
complexas quanto o jazz e a bossa nova – “alcançar sucessos usando
os diferentes níveis dependerá mais do fisioterapeuta do que da criança”,
diria o Sr. Cuevas.
Para mim está
claro que, no cerne de sua filosofia, o CME não foca a
patologia, e sim garimpa no solo das potencialidades individuais de cada criança,
da sua neuroplasticidade - e porque não dizer neuropotencialidade motora. Diante
das situações que se apresentam no decorrer dos exercícios realizados, o Sr. Cuevas observa, cria e aplica
constantemente múltiplas alternativas que buscam provocar as situações
necessárias para estimular as novas vias
neuronais e suas experimentações sinápticas, que levarão
ao desenvolvimento neuromotor possível. Na terapia CME, o profissional deverá
compor as peças com a segurança dos resultados previsíveis subsequentes, “movendo-se sempre antecipadamente”,
como diria o Sr. Cuevas - como também se faz em um jogo de xadrez ou em uma
improvisação jazzística.
Hoje, tão
pouco tempo depois de conhecermos o método, temos uma fisioterapeuta, a Sra. Jacira
Guesser Kruger, que já atende o Caiano e outras crianças
aqui do Sul do Brasil, usando o CME.
Bolas, tábuas,
pranchas, tecidos, caixas, cubos, discos, canos e luvas são
elementos que constituem as ferramentas básicas desse processo criativo
imaginado pelo Sr. Cuevas - com proporções e encaixes simples, mas que permitem
incontáveis derivações e combinações. A habilitação
de movimentos coordenados em uma criança com paralisia cerebral seguramente
dependerá da exploração
de sua neuropotencialidade motora e, na minha ótica, de como o fisioterapeuta
CME planejará o despertar de movimentos primitivos tornando-os coordenados e
funcionais, habilitando o pequenininho Homo
sapiens a sair autonomamente de sua caverna.
Somos gratos,
Sr. Cuevas.
Issakar Lima Souza*
(issakar.souza@ufsc.br)
*É
Doutor em Genética e Evolução pela Universidade Federal de São
Carlos (Brasil), e professor pesquisador do Departamento de Biologia Celular,
Embriologia e Genética da Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil).
2 comentários:
Olá Issakar... Texto muito explicativo, que inspira expectativas boas. Gostaria de questionar algo: Qual alternativa viável para família de baixa renda ter acesso a essa fisioterapia do Sr. Cuevas? E, Existem cursos, desse tipo de trabalho mais aplicativo, aqui no Brasil, para fisioterapeutas?
Olá Valeria, vou tomar a frente e tentar responder suas perguntas... Famílias que possuem planos de saúde tem conseguido reembolso (via judicial ou não) e há relatos na internet de algumas família, aqui em Santa Catarina, que conseguiram o pagamento das terapias pela prefeitura de sua cidade via judicial, com terapeutas de suas cidades brasileiras. Sobre os cursos, há informações na página facebook e site oficial cuevasmedek.com.
Assinado: Jacira Guesser Krüger - fisioterapeuta CME nível 3
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